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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

PT, PSDB e o Partido da Ordem

Escrevi este texto há alguns anos, para um trabalho da universidade. A ideia era relacionar o "O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, de Karl Marx, com algum fato da atualidade. Mesmo com as imprecisões esperadas de um trabalho de graduação e a também esperada desatualização, talvez faça algum sentido neste momento de segundo turno das eleições entre PSDB e PT.


“O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, de Karl Marx, foi escrito no início de 1952, logo após o golpe de estado dado por Luís Bonaparte durante a o período conhecido como Segunda República (1848-1851). Marx desenvolve sua tese em torno dos fatos acontecidos entre a queda de Luís Felipe – monarca da casa de Orléans – e a ascensão de Napoleão III como imperador da França no golpe de dezembro de 1851. A ideia defendida por Marx é a de que a burguesia – a classe que fez a revolução na França, que traz a idade moderna à França enterrando o feudalismo, a certa altura prefere abrir mão de seu poder político, alia-se a aristocracia agrária (os Bourbon) e à aristocracia financeira (os Orléans) e, no limite, permite o golpe de estado de Luís Bonaparte para evitar que a revolução avançasse para além de seus próprios interesses e a consequente perda de seu poder econômico. Assim, em dado momento Marx enxerga um Partido da Ordem. Não um partido formalizado, mas um partido real em que forças com interesses divergentes numa primeira análise (de um lado republicanos burgueses, de outro monarquistas aristocratas) se unem em torno de um mesmo objetivo: manter afastado o fantasma de uma revolução operária e/ou pequeno-burguesa.
Guardadas as proporções, e mantidas as diferenças podemos ver algo parecido (embora apenas superficialmente, como veremos) no período de 2003 a 2010, durante os dois governos Lula.
Durante o Governo Lula, o grande medo de que o país entrasse numa crise profunda por  conta de uma fuga de capital motivada pelo medo de um governo de esquerda (um medo precipitado, pois todos os pensadores sérios já sabiam que o PT, a essa altura, era um partido acomodado à ordem burguesa) logo foi substituído pela certeza de que o governo Lula iria cumprir com a cartilha do capitalismo neoliberal e mais, com a vantagem de conseguir conter os movimentos sociais sem a necessidade (na maior parte das vezes) de lançar mão do uso da força. 

Vejamos então os acontecimentos na França a partir da análise conjuntural feita por Marx em “O 18 Brumário...” para depois chegarmos ao Governo Lula. 

Logo após a revolução de fevereiro de 1848, que tira a aristocracia financeira – na figura de Luís Felipe – do poder, instala-se o governo provisório que é composto por uma  aliança entre classes e suas frações – os Legitimistas (Aristocracia agrária), a Burguesia Industrial, a Pequena Burguesia, o Campesinato, o Proletariado. Todos liderados pela Burguesia Industrial. Todas, classes possuidoras, exceto o proletariado.

Ao governo provisório, sucede-lhe a Assembleia Constituinte. Diferentemente do período anterior, a constituinte tem uma correlação de forças altamente desfavorável ao proletariado. E este vê os seus interesses sendo preteridos durante o exercício da Assembleia Constituinte. Então, em junho de 1848, o proletariado organizado realiza uma insurreição. Todas as classes e suas frações – a aristocracia financeira, a burguesia industrial, a classe média, a pequena burguesia, o exército, o lumpemproletariado (recrutado para a Guarda Móvel), o clero e o campesinato unem-se para impedir a vitória do proletariado. A Assembleia Constituinte nomeia o Ministro da Guerra, o general  Louis-Eugène Cavaignac chefe do poder executivo e lhe confere poderes ditatoriais. Sob a ordem deste, os insurretos são massacrados. Mais de três mil são mortos, quinze mil são deportados e outros milhares são presos.

Com essa derrota, o proletariado perde força, mas o fantasma da revolução vermelha permanece. E a burguesia passa a usar este fantasma para articular uma aliança com as demais classes possuidoras e começar a afundar a revolução que ela iniciou. A própria constituição passa a ser reacionária em alguns pontos e em nome da propriedade, da família, da religião e da ordem, a própria burguesia industrial passa a perder força política. 

Em dezembro de 1848, seguindo o previsto pela constituição, ocorrem eleições presidenciais. Concorrem Louis-Eugène Cavaignac, o carniceiro, e Luís Bonaparte, o aventureiro. O nome Bonaparte – o do tio, o de Napoleão I que tinha assegurado a reforma agrária – é suficientemente forte para despejar uma avalanche de votos do campesinato – que percebe que após o proletariado, ele poderia ser o próximo a ser esmagado – para o sobrinho de Napoleão, e este torna-se o presidente da França. 

A partir de agora, a burguesia industrial, que dirige a Assembleia Constituinte, terá de competir o poder com o poder executivo, que não está nas mãos de alguém ligado diretamente à burguesia. Que está nas mãos de um autocrata. Alguém que jogará com o medo burguês da revolução socialista em seu proveito próprio.

Quando em maio de 1849 é formada a Assembleia Nacional Legislativa, em substituição à Assembleia Constituinte, a Pequena Burguesia, junto de uma fração do Proletariado, surpreendentemente assume praticamente um terço das cadeiras. Isso reacende uma ameaça aos interesses burgueses, que são o de um desenlace moderado para a revolução, diferentemente do partido social-democrata (a aliança operária-pequeno-burguesa), ou a Montanha, como a chama Marx em referência à aliança Jacobina de 1793-1795. E quando em junho do mesmo ano, a pequena burguesia se levanta contra a morosidade conservadora da maioria Legitimista-Orleanista-Burguesa numa nova insurreição – novamente massacrada – essas três forças se reúnem definitivamente no Partido da Ordem. 

Um partido de fato, mas não formal. Um partido que reúne forças que aparentemente divergem em seus interesses, a saber: os Legitimistas – a aristocracia rural, os latifundiários; os Orleanistas – a aristocracia financeira os banqueiros; a Burguesia Industrial. Ora, os banqueiros queriam vender crédito sempre mais caros. O latifúndio queria manter alto o preço da matéria prima. À indústria, nada disso interessava. Contudo havia um interesse que se sobrepunha a estas divergências: a ordem. Somente sob a ordem vigente eles poderiam manter seu poder econômico. Assim, começam todos a fazer concessões políticas. A aristocracia, que, vale dizer, neste momento já era mais burguesa que aristocrata, mantém seu discurso de restauração da monarquia apenas de modo vazio. A burguesia tem de engolir seco e começar a pisar na revolução que construiu, principalmente conduzindo a regulamentação da Constituição de modo a segurar as intenções de radicalização a democracia da pequena-burguesia e do proletariado. Essa aliança permite a queda do sufrágio universal e, no limite, culminará no dar de ombros do Partido da Ordem ao Golpe de dezembro de 1851 de Luís Bonaparte, já que com a queda do sufrágio universal, cada vez mais o Partido da Ordem perde em legitimidade política para Luís Bonaparte, que se torna o grande defensor do sufrágio universal e, mais, passa a ser a grande voz da defesa da propriedade, da família e da religião, além claro de ter apoio de uma massa – o campesinato – embora não tenha ligações orgânicas com ela. Diante da impossibilidade de conservar o seu poder político, o partido da ordem abre mão deste para conservar o seu poder econômico.

Pois bem, entendida a análise de conjuntura aliada à sucessão dos fatos ao longo da Segunda República, culminando do Golpe de dezembro de 1851, tentemos entender que relações podemos estabelecer entre o Partido da Ordem da Segunda República Francesa e o Partido da Ordem do Governo Lula.

Da mesma forma que na França, havia uma ameaça vermelha no Brasil no início dos anos 2000. Se não na forma de uma massa insurreta, na forma de um partido de passado de esquerda. Contudo cabe deixar claro que, como diz Marx, a história se repete sempre na forma de farsa. No nosso caso, analisaremos a farsa da farsa.

A farsa da farsa porque, em primeiro lugar, a ameaça vermelha do PT nos anos 2000 já não era mais tão ameaça nem tão vermelha. Basta lembrar de dois fatos: a “Carta ao povo brasileiro”, em que o PT se compromete a honrar contratos realizados durante os governos neoliberais de FHC; e o “Lulinha Paz e Amor”, estratégia de marketing adotada durante a campanha presidencial que afastava qualquer ideia – de quem vá saber por que motivo pudesse ainda tê-la – de um mandato que estivesse disposto a organizar a luta da classe trabalhadora. 

Assim, da mesma forma que a Burguesia Industrial realizara em 1848, a ameaça vermelha brasileira era muito mais uma estratégia de propaganda tucana regada a discurso amedrontado de Regina Duarte e movimento ultrarreacionário de Hebe Camargo como forma de jogar, principalmente, com a classe média. Só que, agora, com uma ameaça que não tinha base em nenhum fato concreto recente. A não ser as greves do ABC ocorridas há mais de 20 anos deste período.

Qual era então a real ameaça que ocorria naquele período. A fuga de capital especulativo. A eleição de Lula era vista com insegurança pelo especulador, e começa a haver uma fuga de capitais que leva o dólar a beira dos R$ 4,00. Numa economia nacional fragilmente inserida na economia mundializada como a do Brasil na época poderia haver uma grande crise econômica de âmbito local com o centro no Brasil.

Mas o que ocorre após a eleição de Lula? O promessa do “Lulinha Paz e Amor” é cumprida. E o governo Lula se mostra um grande governo de conciliação com a burguesia. Em pouco tempo a burguesia percebe que tinha no governo um aliado, não um adversário. Segundo as palavras do próprio Lula, os bancos nunca lucraram tanto, a indústria nunca lucrou tanto e a classe trabalhadora nunca foi tão dócil. Isso porque os principais movimentos sociais, as principais centrais sindicais, foram cooptadas com cargos no governo. Além disso, o carro-chefe do governo, o Bolsa-Família permite a milhões de pessoas a ter um pequeno incremento de renda e segura as pressões sociais que poderiam haver numa eventual crise (que só ocorre no fim do governo).

Aqui percebemos que a estratégia de Lula foi diametralmente oposta à das Assembleia Constituinte em 1848. Foi justamente por negar qualquer concessão ao proletariado, que este se levanta e se insurge contra a burguesia, culminando na carnificina de Cavaignac. Lula estabelece uma estratégia conciliatória que lhe permite governar em mares tranquilos mesmo em momentos de tensão política, como o do mensalão. Com pouco investimento – o montante gasto com o Bolsa-Família é irrisório se comparado ao montante gasto com repasses à burguesia agrária, industrial e financeira –, ele consegue conter as pressões sociais e governar de fato para a burguesia.

 Entendidas as diferenças, quais são as semelhanças entre 1848-1851 e 2003-2010? PT e PSDB, junto de seu braços menores (PC do B e PFL/DEM respectivamente), passam a representar os interesses das mesmas frações da sociedade. Suas divergências são absolutamente menores diante de seus interesses comuns. No PT encontram-se, neste momento, principalmente setores da intelectualidade e da burocracia sindical. No PSDB, outra fração da academia e a burguesia industrial e agrária. Contudo a ambos interessa o mesmo projeto: o desenvolvimentismo ligado à ordem e submetido às regras do capital.

É claro que a burguesia não se contenta facilmente com o poder econômico em detrimento do poder político. O fato de o representante de seus interesses no Executivo não estar diretamente ligado a ela, é de alguma forma um problema. Como também difere o fato de que aqui, a ligação de Lula com as massas tem um passado de organicidade, embora em 2003 essa ligação já seja forte apenas simbolicamente. Mas Luís Bonaparte nem isso tinha. O símbolo forte de Luís Bonaparte não era o seu passado, mas o de seu tio.

Mas, de qualquer forma, o que podemos entender é que hoje a burguesia sente-se reconfortada e representada tanto no PT quanto no PSDB. Podemos então dizer que, apesar das diferenças entre os períodos, em ambos encontramos um informal partido da ordem, que se aplica na manutenção do Status Quo lançando mão dos artifícios que têm à mão para conter a classe trabalhadora e afastar as possibilidades de uma revolução social. No século XIX na França, este risco era iminente. No Brasil do século XXI, não passa de um sonho. Mas para a burguesia, com Lula, aprendeu que é melhor prevenir que remediar.

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